A possível fusão do sistema V Sge (V Sagittae) em 2083
V Sge é uma Variável
Cataclísmica, e como o próprio nome indica, são estrelas que apresentam
explosões violentas ocasionais causadas por processos termonucleares, tanto em
suas camadas superficiais quanto nos seus interiores. A maioria dessas
variáveis são sistemas binários próximos, com seus componentes tendo forte
influência mútua na evolução de cada estrela. Observa-se frequentemente que o
componente anão quente do sistema é cercado por um disco de acreção formado por
matéria perdida pelo outro componente, mais frio e maior em diâmetro.
Animação mostrando o comportamento de um sistema de Variável Cataclísmica
Estrelas variáveis
cataclísmicas são objetos em que, como sugere seu nome, são observados aumentos
súbitos de brilho (erupções ou cataclismos). Inicialmente foram observadas as
erupções das chamadas novas, com
grande amplitude (i.e., grande diferença entre o patamar de brilho normal do
objeto e o brilho máximo). A seguir, no começo do século passado, foram
identificadas erupções com amplitude e tempo de recorrência menores, que
ficaram conhecidas como novas anãs.
Além das diferenças de amplitudes, os mecanismos físicos que geram
essas duas erupções são bem distintos. No caso das novas, são reações
termonucleares que subitamente voltam a ocorrer nas camadas superficiais das
anãs brancas que compõem esses objetos. Nas novas anãs, as erupções ocorrem
devido a um aumento súbito na taxa de transferência de massa no disco de
acréscimo. O disco se forma em torno da anã branca quando esta não tem campos
magnéticos muito intensos, abastecido pela matéria transferida de sua estrela
companheira. O modelo mais aceito atualmente relaciona as erupções de novas
anãs a instabilidades térmicas que ocorrem quando regiões desse disco alcançam
uma condição física crítica.
Antecipamos no
parágrafo acima, algumas informações que indicam que as variáveis cataclísmicas
são sistemas binários. Mais especificamente, são sistemas binários compactos
que contém uma anã branca (chamada primária) que recebe matéria de uma estrela
companheira (a secundária), que geralmente é uma estrela de baixa massa da
Sequência Principal. Essa definição abrange um um conjunto heterogêneo de
binárias pois podem ser incluídas outras classes com primárias anãs
brancas, como binárias compactas fontes de raios-X (as CBSS, do termo em inglês Compact
Binary Supersoft X-ray Sources). As CBSS
foram descobertas inicialmente nas Nuvens de Magalhães (galáxias satélites da
Via Láctea) e são caracterizadas
por elevadas taxas de transferência de massa proveniente da secundária (100
vezes maior que em variáveis cataclísmicas normais). V Sge dá nome a uma classe
das CBSS (as estrelas V Sge)
presentes em nossa Galáxia. As CBSS
(e, consequentemente as estrelas V Sge) são fortíssimas candidatas à
progenitoras das supernovas do tipo Ia (abreviadas por SNe Ia). As SNe Ia são
as ferramentas mais úteis, precisas e consolidadas para determinação de
distâncias extragalácticas, com alto valor científico em Cosmologia. Foram
utilizadas para uma das descobertas científicas mais impactantes do último
meio-século: a expansão acelerada do Universo.
Um assunto que chegou aos olhos do público entre o final de 2019 e
início de 2020 disserta sobre uma previsão feita pelos astrônomos Bradley E.
Schaefer, Juhan Frank e Manos Chatzopoulos, do Departamento de Física e
Astronomia da Universidade Estadual da Louisiana e discutida na 235ª reunião da
Sociedade Astronômica Americana em Honolulu, Havaí. Segundo eles, V Sge está
com um comportamento digamos, extremo. A separação orbital (distância entre os
centros das estrelas) do sistema está diminuindo, ou seja, as estrelas estão em
constante espiral, o que as levará a se fundir no futuro.
Mostraremos as evidências observacionais que levaram Schaefer, Frank e
Chatzopoulos a concluir sobre a fusão das estrelas. Além disso, os autores
estimaram a época que ela ocorrerá: no fim Séc. XXI, mais especificamente, ano
de 2083 (com uma incerteza de 16 anos). Descrevem ainda o resultado final dessa
fusão. Existem três evidências independentes e fortes de que o período e o
raio orbitais de V Sge têm diminuído rapidamente, causando um movimento espiral
de uma estrela em relação à outra:
1 - Razão
de massa > 1.
A primeira evidência é a medida das massas das estrelas. Como V Sge é
um sistema binário espectroscópico e eclipsante, as massas são conhecidas de
maneira confiável.A razão de massa (i.e.,
a razão entre a massa da secundária e a massa da primária) é q = 3,9 ± 0,3. Há
muito se sabe que variáveis cataclísmicas com q > 1 são necessariamente
instáveis à transferência de massa que acontece de modo descontrolado e causa o
movimento espiral que terminará na fusão das estrelas. É fácil entender o
mecanismo físico para essa instabilidade descontrolada. Quando uma companheira
relativamente massiva transfere massa, seu Lobode Roche* fica menor, aumentando ainda mais a taxa de transferência de
massa, num efeito dominó. Esse tipo de instabilidade é conhecida há muito
tempo, mas ninguém jamais viu em um sistema estelar além de V Sge. V Sge é a
única variável cataclísmica conhecida que possui q > 1. Todos os
outros sistemas têm q < 1, até mesmo outros objeto da classe V Sge têm q
< 0,5. portanto, é o único caso conhecido em que essa instabilidade pode ser
observada.
*Lobo de Roche - é a
região (volume) do espaço ao redor de uma estrela de um sistema binário na qual
uma partícula é gravitacionalmente ligada a essa estrela. Se, por algum motivo,
o gás das camadas externas de uma estrela de um sistema binário ultrapassar o
lobo de Roche, ele será capturado gravitacionalmente pela estrela companheira.
É limitada por uma superfície equipotencial crítica, que tem o formato
aproximado de uma gota, com a estrela no centro e ápice apontando para a
estrela companheira. No ápice está localizado o ponto lagrangiano interno L1, que é um ponto de
equilíbrio instável, onde as duas estrelas exercem forças gravitacionais com
mesma intensidade. Qualquer pequeno
movimento de uma partícula em torno L1,
na direção da linha que liga os centros das estrelas, fará com que ela seja
capturada gravitacionalmente por uma das componentes. É diferente do limite de
Roche, onde a distância na qual um objeto que se mantém unido somente pela
gravidade começa a romper-se devido à força de maré. E também se distingue da
Esfera de Roche (ou Hill), a qual se aproxima da esfera de influência
gravitacional de um corpo astronômico face a perturbações de um outro corpo
mais massivo, em torno da qual ele orbita. Por sua vez, as denominações lobo de
Roche, limite de Roche, e esfera de Roche foram feitas em homenagem ao
astrônomo francês Édouard Roche (1820-1883).
Figura 1 - Representação tridimensional do potencial gravitacional no plano
orbital de um sistema binário. O plano inferior representa as posições x e y
no plano da órbita dos objetos, e o eixo vertical é o valor do potencial
gravitacional. Dentro dos dois "poços" da parte central da superfície
estão localizadas as duas estrelas. Ao colocarmos uma partícula em uma posição
qualquer da superfície de potencial, ela se moverá na direção da inclinação da
superfície naquele ponto, como se estivesse caindo em uma ladeira de potencial.
Caso uma das estrelas aumentar seu raio (ao sair da Sequência Principal, por
exemplo), o gás de sua atmosfera começará a vazar pelo pequeno rebaixo que
existe entre os poços, em direção a sua companheira. As curvas no plano
inferior são as projeções das curvas de nível da superfície (curvas com mesmo
valor de potencial no eixo vertical). Os dois pontos são os centros das duas
estrelas. O contorno interno destacado, curvas no formato de gota que envolvem
as estrelas, são seus respectivos lobos de Roche. O ponto lagrangiano interno L1 está indicado. Outros
pontos lagrangianos - L2 e
L3 - também estão
representados.
2 - Observa-se que o período está diminuindo
rapidamente.
V Sge é uma binária eclipsante, com amplitude de variação de brilho
entre 8.6 e 13.9 magnitudes (na banda V) em um período de pouco mais de 12
horas. O instante de mínima luz do eclipse é uma medida aproximada do instante de conjunção na órbita (ou seja, o instante em que a secundária passa
em frente à primária). Cronometrando o intervalo entre dois mínimos, o período
orbital (P) pode ser medido com
grande precisão. Pela coleta dos instantes de eclipse ao longo de muitas
décadas, pode-se medir a variação temporal do período orbital.
V Sge teve instantes de eclipse medidos com fotometria fotoelétrica e
publicados na literatura de 1962 a 1994, e com fotometria CCD até 1998. Esses
períodos de eclipse na literatura foram complementados com (a) arquivo de
placas fotográficas, ampliando a base temporal até 1909, (b)
curvas de luz de fotometria CCD de astrônomos amadores de 2000
a 2018 e (c) com as impressionantes curvas de luz do TESS de julho e agosto de
2019. Um total 183 instantes de eclipse entre os anos de 1909 e 2019, mostram
uma taxa de variação de P altamente
significativa, flagrante e constante no período orbital. A taxa medida é igual 4,73 × 10−10 dias/ciclo,
onde o sinal negativo significa que o período de tempo está diminuindo. Para
ser ter uma ideia mais clara de quanto essa taxa representa, ela é equivalente
à uma redução de P de 0,03 segundos a
cada ano. Portanto, existem observações diretas ao longo de 111 anos de que o
período orbital está diminuindo. Na realidade, essa é a taxa de diminuição mais
intensa já medida para qualquer variável cataclísmica! V Sge está em um
movimento espiral muito rápido.
3 - Sistema está dobrando de brilho a cada 89
anos.
O sistema V Sge foi descoberto no ano de 1904, e houve estimativas de sua
magnitude visual continuamente desde então. Além disso, V Sge foi registrada em
fotografias antigas do céu, agora arquivadas, a partir de 1890, fornecendo
outro registro das variações de brilho. É preciso cuidado para que todas as
magnitudes individuais sejam colocadas com precisão em um único sistema de
magnitudes moderno, mas não é complicado de ser feito comparando-se velhas
imagens com as bandas fotométricas atuais. O resultado é uma curva de luz na
banda V moderna, com 68.016 medidas de magnitude entre 1904–2019, mais uma
curva de luz na banda B, com 1.531 medidas de 1890 até 2017.
As duas curvas de luz mostram,
independentemente, que V Sge está aumentando de brilho sistematicamente de 1890
a 2019. Existe uma variabilidade caótica sobreposta a esse aumento sistemático
de brilho. Além disso, a tendência de aumento de brilho não é perfeitamente
linear. A estrela aumentou o brilho por um fator de 2,2 ± 0,2 de 1900 a 2000. A
taxa média de brilho é de -0,84 magnitudes por século na banda V e -0,92 magnitudes
por século na banda B. Um aumento linear nas magnitudes ao longo do tempo é o
mesmo que um aumento exponencial no fluxo, o que pode ser expresso como uma
escala de tempo para duplicação do brilho. Para V Sge, essa escala é de 89 ± 11
anos. As incertezas de na medição dessa escala são a fonte dominante de
incerteza para prever a data de fusão das estrelas. Concluímos, portanto, que V
Sge está duplicando seu brilho a cada 89 anos. Como o brilho do objeto é
dominado pela radiação emitida pelo acréscimo de matéria na primária, isso
significa que a taxa de acréscimo também dobra nesse nessa escala. A única maneira desse fenômeno
acontecer tão rapidamente é diminuindo o lobo de Roche e diminuindo a separação
orbital, causando um movimento espiral das estrelas. Abaixo, uma curva de luz de
astrônomos amadores mostrando a variabilidade do sistema com observações entre
1999 e 2020.
Figura 2 - Curva de luz de V Sge de observações feitas por astrônomos amadores
da AAVSO. Os pontos verdes são medidas de magnitude na banda V, e os azuis na
banda B. Na curva de luz é perceptível a variabilidade caótica do objeto. Além
da variabilidade de curta escala de tempo (eclipses e modulações orbitais), o
objeto exibe erupções e transições entre estados alto e baixo (além de outras
variações em escalas de tempo menores).
Qual o destino final do sistema?
Apesar de argumentar que a previsão de fusão do sistema em 2083 é
robusta, os autores destacam que há possibilidade de ação de efeitos físicos
que não foram considerados no modelo simples utilizado para a estimativa da
data. Além disso, a variabilidade caótica do objeto pode antecipar ou atrasar a
previsão, já que o modelo considerou uma taxa de acréscimo média. Se no futuro
V Sge se mantiver no estado alto de brilho na maior parte do tempo, por
exemplo, a época da fusão poderá ser consideravelmente antecipada.
Os astrônomos também descrevem, qualitativamente, os instantes finais
do sistema binário. O destino inevitável da binária será uma órbita espiral,
com a taxa de transferência de massa crescente, até que - em seus últimos meses
- alcance uma configuração de envelope comum: o núcleo restante da estrela
secundária, depois de ter transferido a maior parte da sua massa, espiralando
dentro das camadas externas de hidrogênio de uma gigante vermelha. Mas de onde
saiu essa gigante vermelha? Ela é a anã branca revigorada pela matéria
transferida de sua companheira. Para um observador da Terra, os dias finais
deste processo de fusão exibirão uma erupção da chamada nova vermelha luminosa.
Essas erupções são tipicamente mais brilhantes que as erupções de novas e mais
fracas que supernovas, e caracterizadas por uma cor avermelhada à medida que
seu brilho vai caindo.
Ansiosos para o espetáculo final? Toda comunidade astronômica também
está! O acompanhamento do objeto nos próximo anos será fundamental para a
consolidação da data prevista para fusão. Dessa maneira, os telescópios poderão
estar preparados e não correremos o risco de perder todos os detalhes do show. Agradecimentos especiais: Gostaríamos de agradecer aos Professores: Bernardo W. Borges; Professor Associado; Coordenadoria Especial de Física, Química e Matemática (FQM); Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - Campus de Araranguá/SC; Graduação, mestrado e doutorado em Física pela UFSC - Área de concentração: Astrofísica; Áreas de pesquisa/atuação: Astrofísica Estelar, Astronomia no Ótico; E Alexandre Zabot Físico, doutor em Física 2011, na área de Astrofísica. Professor da UFSC Joinville desde 2012. Realiza pesquisa em Petrofísica Digital e desenvolve projetos de extensão para ensino de Astrofísica.
Que nos ajudaram na revisão e acréscimo de conteúdos da postagem, com muita humildade e gentileza. Nossos mais sinceros agradecimentos.
Schaefer B. E., Frank J., Chatzopoulos M.,
2020, AAS, 435.04
Formação e evolução de estrelas duplas compactas. Disponível
em: <http://hemel.waarnemen.com/Informatie/Sterren/hoofdstuk6.html#mtr>.
Acessado em: 12 jan. 2020.
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