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terça-feira, 5 de maio de 2020

A possível fusão do sistema V Sge (V Sagittae) em 2083


V Sge é uma Variável Cataclísmica, e como o próprio nome indica, são estrelas que apresentam explosões violentas ocasionais causadas por processos termonucleares, tanto em suas camadas superficiais quanto nos seus interiores. A maioria dessas variáveis são sistemas binários próximos, com seus componentes tendo forte influência mútua na evolução de cada estrela. Observa-se frequentemente que o componente anão quente do sistema é cercado por um disco de acreção formado por matéria perdida pelo outro componente, mais frio e maior em diâmetro.




Animação mostrando o comportamento de um sistema de Variável Cataclísmica


Estrelas variáveis cataclísmicas são objetos em que, como sugere seu nome, são observados aumentos súbitos de brilho (erupções ou cataclismos). Inicialmente foram observadas as erupções das chamadas novas, com grande amplitude (i.e., grande diferença entre o patamar de brilho normal do objeto e o brilho máximo). A seguir, no começo do século passado, foram identificadas erupções com amplitude e tempo de recorrência menores, que ficaram conhecidas como novas anãs.

Além das diferenças de amplitudes, os mecanismos físicos que geram essas duas erupções são bem distintos. No caso das novas, são reações termonucleares que subitamente voltam a ocorrer nas camadas superficiais das anãs brancas que compõem esses objetos. Nas novas anãs, as erupções ocorrem devido a um aumento súbito na taxa de transferência de massa no disco de acréscimo. O disco se forma em torno da anã branca quando esta não tem campos magnéticos muito intensos, abastecido pela matéria transferida de sua estrela companheira. O modelo mais aceito atualmente relaciona as erupções de novas anãs a instabilidades térmicas que ocorrem quando regiões desse disco alcançam uma condição física crítica.

Antecipamos no parágrafo acima, algumas informações que indicam que as variáveis cataclísmicas são sistemas binários. Mais especificamente, são sistemas binários compactos que contém uma anã branca (chamada primária) que recebe matéria de uma estrela companheira (a secundária), que geralmente é uma estrela de baixa massa da Sequência Principal. Essa definição abrange um um conjunto heterogêneo de binárias pois podem ser incluídas outras classes com primárias anãs brancas, como binárias compactas fontes de raios-X (as CBSS, do termo em inglês Compact Binary Supersoft X-ray Sources). As CBSS foram descobertas inicialmente nas Nuvens de Magalhães (galáxias satélites da Via Láctea) e são caracterizadas por elevadas taxas de transferência de massa proveniente da secundária (100 vezes maior que em variáveis cataclísmicas normais). V Sge dá nome a uma classe das CBSS (as estrelas V Sge) presentes em nossa Galáxia. As CBSS (e, consequentemente as estrelas V Sge) são fortíssimas candidatas à progenitoras das supernovas do tipo Ia (abreviadas por SNe Ia). As SNe Ia são as ferramentas mais úteis, precisas e consolidadas para determinação de distâncias extragalácticas, com alto valor científico em Cosmologia. Foram utilizadas para uma das descobertas científicas mais impactantes do último meio-século: a expansão acelerada do Universo.

Um assunto que chegou aos olhos do público entre o final de 2019 e início de 2020 disserta sobre uma previsão feita pelos astrônomos Bradley E. Schaefer, Juhan Frank e Manos Chatzopoulos, do Departamento de Física e Astronomia da Universidade Estadual da Louisiana e discutida na 235ª reunião da Sociedade Astronômica Americana em Honolulu, Havaí. Segundo eles, V Sge está com um comportamento digamos, extremo. A separação orbital (distância entre os centros das estrelas) do sistema está diminuindo, ou seja, as estrelas estão em constante espiral, o que as levará a se fundir no futuro. 

Mostraremos as evidências observacionais que levaram Schaefer, Frank e Chatzopoulos a concluir sobre a fusão das estrelas. Além disso, os autores estimaram a época que ela ocorrerá: no fim Séc. XXI, mais especificamente, ano de 2083 (com uma incerteza de 16 anos). Descrevem ainda o resultado final dessa fusão.  Existem três evidências  independentes e fortes de que o período e o raio orbitais de V Sge têm diminuído rapidamente, causando um movimento espiral de uma estrela em relação à outra:

1 -  Razão de massa > 1.

A primeira evidência é a medida das massas das estrelas. Como V Sge é um sistema binário espectroscópico e eclipsante, as massas são conhecidas de maneira confiável.  A razão de massa (i.e., a razão entre a massa da secundária e a massa da primária) é q = 3,9 ± 0,3. Há muito se sabe que variáveis cataclísmicas com q > 1 são necessariamente instáveis à transferência de massa que acontece de modo descontrolado e causa o movimento espiral que terminará na fusão das estrelas. É fácil entender o mecanismo físico para essa instabilidade descontrolada. Quando uma companheira relativamente massiva transfere massa, seu Lobo  de Roche* fica menor, aumentando ainda mais a taxa de transferência de massa, num efeito dominó. Esse tipo de instabilidade é conhecida há muito tempo, mas ninguém jamais viu em um sistema estelar além de V Sge. V Sge é a única variável cataclísmica conhecida que possui q > 1. Todos os outros sistemas têm q < 1, até mesmo outros objeto da classe V Sge têm q < 0,5. portanto, é o único caso conhecido em que essa instabilidade pode ser observada. 

*Lobo de Roche -  é a região (volume) do espaço ao redor de uma estrela de um sistema binário na qual uma partícula é gravitacionalmente ligada a essa estrela. Se, por algum motivo, o gás das camadas externas de uma estrela de um sistema binário ultrapassar o lobo de Roche, ele será capturado gravitacionalmente pela estrela companheira. É limitada por uma superfície equipotencial crítica, que tem o formato aproximado de uma gota, com a estrela no centro e ápice apontando para a estrela companheira. No ápice está localizado o ponto lagrangiano interno L1, que é um ponto de equilíbrio instável, onde as duas estrelas exercem forças gravitacionais com mesma intensidade.  Qualquer pequeno movimento de uma partícula em torno L1, na direção da linha que liga os centros das estrelas, fará com que ela seja capturada gravitacionalmente por uma das componentes. É diferente do limite de Roche, onde a distância na qual um objeto que se mantém unido somente pela gravidade começa a romper-se devido à força de maré. E também se distingue da Esfera de Roche (ou Hill), a qual se aproxima da esfera de influência gravitacional de um corpo astronômico face a perturbações de um outro corpo mais massivo, em torno da qual ele orbita. Por sua vez, as denominações lobo de Roche, limite de Roche, e esfera de Roche foram feitas em homenagem ao astrônomo francês Édouard Roche (1820-1883).


Figura 1 - Representação tridimensional do potencial gravitacional no plano orbital de um sistema binário. O plano inferior representa as posições x e y no plano da órbita dos objetos, e o eixo vertical é o valor do potencial gravitacional. Dentro dos dois "poços" da parte central da superfície estão localizadas as duas estrelas. Ao colocarmos uma partícula em uma posição qualquer da superfície de potencial, ela se moverá na direção da inclinação da superfície naquele ponto, como se estivesse caindo em uma ladeira de potencial. Caso uma das estrelas aumentar seu raio (ao sair da Sequência Principal, por exemplo), o gás de sua atmosfera começará a vazar pelo pequeno rebaixo que existe entre os poços, em direção a sua companheira. As curvas no plano inferior são as projeções das curvas de nível da superfície (curvas com mesmo valor de potencial no eixo vertical). Os dois pontos são os centros das duas estrelas. O contorno interno destacado, curvas no formato de gota que envolvem as estrelas, são seus respectivos lobos de Roche. O ponto lagrangiano interno L1 está indicado. Outros pontos lagrangianos - L2 e L3 - também estão representados.

2 - Observa-se que o período está diminuindo rapidamente.

V Sge é uma binária eclipsante, com amplitude de variação de brilho entre 8.6 e 13.9 magnitudes (na banda V) em um período de pouco mais de 12 horas. O instante de mínima luz do eclipse é uma medida aproximada do instante de conjunção na órbita (ou seja, o instante em que a secundária passa em frente à primária). Cronometrando o intervalo entre dois mínimos, o período orbital (P) pode ser medido com grande precisão. Pela coleta dos instantes de eclipse ao longo de muitas décadas, pode-se medir a variação temporal do período orbital. V Sge teve instantes de eclipse medidos com fotometria fotoelétrica e publicados na literatura de 1962 a 1994, e com fotometria CCD até 1998. Esses períodos de eclipse na literatura foram complementados com (a) arquivo de placas fotográficas, ampliando a base temporal até 1909, (b) curvas de luz de fotometria CCD  de astrônomos amadores de 2000 a 2018 e (c) com as impressionantes curvas de luz do TESS de julho e agosto de 2019. Um total 183 instantes de eclipse entre os anos de 1909 e 2019, mostram uma taxa de variação de P altamente significativa, flagrante e constante no período orbital. A taxa medida é  igual 4,73 × 10−10 dias/ciclo, onde o sinal negativo significa que o período de tempo está diminuindo. Para ser ter uma ideia mais clara de quanto essa taxa representa, ela é equivalente à uma redução de P de 0,03 segundos a cada ano. Portanto, existem observações diretas ao longo de 111 anos de que o período orbital está diminuindo. Na realidade, essa é a taxa de diminuição mais intensa já medida para qualquer variável cataclísmica! V Sge está em um movimento espiral muito rápido.

3 - Sistema está dobrando de brilho a cada 89 anos.

O sistema V Sge foi descoberto no ano de 1904, e houve estimativas de sua magnitude visual continuamente desde então. Além disso, V Sge foi registrada em fotografias antigas do céu, agora arquivadas, a partir de 1890, fornecendo outro registro das variações de brilho. É preciso cuidado para que todas as magnitudes individuais sejam colocadas com precisão em um único sistema de magnitudes moderno, mas não é complicado de ser feito comparando-se velhas imagens com as bandas fotométricas atuais. O resultado é uma curva de luz na banda V moderna, com 68.016 medidas de magnitude entre 1904–2019, mais uma curva de luz na banda B, com 1.531 medidas de 1890 até 2017.

As duas curvas de luz mostram, independentemente, que V Sge está aumentando de brilho sistematicamente de 1890 a 2019. Existe uma variabilidade caótica sobreposta a esse aumento sistemático de brilho. Além disso, a tendência de aumento de brilho não é perfeitamente linear. A estrela aumentou o brilho por um fator de 2,2 ± 0,2 de 1900 a 2000. A taxa média de brilho é de -0,84 magnitudes por século na banda V e -0,92 magnitudes por século na banda B. Um aumento linear nas magnitudes ao longo do tempo é o mesmo que um aumento exponencial no fluxo, o que pode ser expresso como uma escala de tempo para duplicação do brilho. Para V Sge, essa escala é de 89 ± 11 anos. As incertezas de na medição dessa escala são a fonte dominante de incerteza para prever a data de fusão das estrelas. Concluímos, portanto, que V Sge está duplicando seu brilho a cada 89 anos. Como o brilho do objeto é dominado pela radiação emitida pelo acréscimo de matéria na primária, isso significa que a taxa de acréscimo também dobra nesse nessa  escala. A única maneira desse fenômeno acontecer tão rapidamente é diminuindo o lobo de Roche e diminuindo a separação orbital, causando um movimento espiral das estrelas. Abaixo, uma curva de luz de astrônomos amadores mostrando a variabilidade do sistema com observações entre 1999 e 2020.

Figura 2 - Curva de luz de V Sge de observações feitas por astrônomos amadores da AAVSO. Os pontos verdes são medidas de magnitude na banda V, e os azuis na banda B. Na curva de luz é perceptível a variabilidade caótica do objeto. Além da variabilidade de curta escala de tempo (eclipses e modulações orbitais), o objeto exibe erupções e transições entre estados alto e baixo (além de outras variações em escalas de tempo menores).

Qual o destino final do sistema?

Apesar de argumentar que a previsão de fusão do sistema em 2083 é robusta, os autores destacam que há possibilidade de ação de efeitos físicos que não foram considerados no modelo simples utilizado para a estimativa da data. Além disso, a variabilidade caótica do objeto pode antecipar ou atrasar a previsão, já que o modelo considerou uma taxa de acréscimo média. Se no futuro V Sge se mantiver no estado alto de brilho na maior parte do tempo, por exemplo, a época da fusão poderá ser consideravelmente antecipada.

Os astrônomos também descrevem, qualitativamente, os instantes finais do sistema binário. O destino inevitável da binária será uma órbita espiral, com a taxa de transferência de massa crescente, até que - em seus últimos meses - alcance uma configuração de envelope comum: o núcleo restante da estrela secundária, depois de ter transferido a maior parte da sua massa, espiralando dentro das camadas externas de hidrogênio de uma gigante vermelha. Mas de onde saiu essa gigante vermelha? Ela é a anã branca revigorada pela matéria transferida de sua companheira. Para um observador da Terra, os dias finais deste processo de fusão exibirão uma erupção da chamada nova vermelha luminosa. Essas erupções são tipicamente mais brilhantes que as erupções de novas e mais fracas que supernovas, e caracterizadas por uma cor avermelhada à medida que seu brilho vai caindo.

Ansiosos para o espetáculo final? Toda comunidade astronômica também está! O acompanhamento do objeto nos próximo anos será fundamental para a consolidação da data prevista para fusão. Dessa maneira, os telescópios poderão estar preparados e não correremos o risco de perder todos os detalhes do show.

Agradecimentos especiais:

Gostaríamos de agradecer aos Professores:
Bernardo W. Borges;
Professor Associado;
Coordenadoria Especial de Física, Química e Matemática (FQM);
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - Campus de Araranguá/SC;
Graduação, mestrado e doutorado em Física pela UFSC - Área de concentração: Astrofísica;
Áreas de pesquisa/atuação: Astrofísica Estelar, Astronomia no Ótico;
E Alexandre Zabot
Físico, doutor em Física 2011, na área de Astrofísica. Professor da UFSC Joinville desde 2012.  Realiza pesquisa em Petrofísica Digital e desenvolve projetos de extensão para ensino de Astrofísica.

Que nos ajudaram na revisão e acréscimo de conteúdos da postagem, com muita humildade e gentileza. Nossos mais sinceros agradecimentos.


Referências:


Schaefer B. E., Frank J., Chatzopoulos M., 2020, AAS, 435.04

Formação e evolução de estrelas duplas compactas. Disponível em: <http://hemel.waarnemen.com/Informatie/Sterren/hoofdstuk6.html#mtr>. Acessado em: 12 jan. 2020.